Pré-Modernismo
Lima Barreto
O homem que sabia javanês
I- Considerações
Esta obra foi publicada pela primeira vez em 1911, pela Gazeta da Tarde. Relato
satírico, é uma medida exemplar do talento de Lima Barreto com contista. E
também de sua modernidade. Apesar da data, o tema continua atualíssimo.
Afinal, quanto de nós já não nos deixamos impressionar pelo difícil palavreado
médico, que parece guardar nossa salvação ou condenação? E o que dizer da
estranha língua em que os economistas tentam justificar a pobreza do país?
Político tem de falar bonito, o que muitas vezes equivale a falar difícil.
Muita gente não entende, mas respeita. Principalmente porque não entende.
Médicos, economistas, políticos e seus "códigos secretos" - quem há
de negar que são homens cultos a quem essa sabedoria, embora traduzida de
maneira incompreensível à maioria, garante respeito, autoridade, poder?
É a irreverência estúpida a esse saber exótico, cifrado que Lima Barreto
satiriza no conto. Um tema caro ao autor, quase uma causa que ele discute em
várias de suas obras. A ascensão e glória de Castelo, porém, servem para a
discussão de outros temas: a artificialidade de alguns intelectuais, a política
dos favores, a eficiência dos títulos num país de doutores.
No conjunto, esses assuntos formam um retrato de uma faceta do Brasil e do
brasileiro. O retrato ressalta a nossa melancólica vocação para o improviso,
para o oportunismo dos muitos "Castelos" da vida nacional. No país
das trapalhadas, a desordem é legítima pr uma ordem feita apenas de aparências.
Avesso e complemento, a desordem mina a ordem social pelo protecionismo, pelos
favores, pelo respeito a títulos, rótulos em si suficientes para garantir
status. O saber ajuda. Mas para a ascensão social talvez importem mais as
relações com pessoas influentes, a proximidade com o poder e a fabricação de
uma imagem do que um saber verdadeiro. Assim, a tal "desordem"
transforma-se em uma espécie de ordem que convive com a outra, a das leis,
normas, a da burocracia.
Castelo sabe disso. Como bom malandro, sabe aproveitar o minado universo da
ordem para dar seu golpe de mestre. Como ele mesmo diz, é um Brasil burocrático
e imbecil que se acham as oportunidades para as "belas páginas da
vida".
II- Personagens
É o próprio Castelo quem narra sua história. O que sabemos dele? Nada de suas
origens. Apenas que frequentou a escola da malandragem. Viajado, vivia de
cambalachos, de pequenos expedientes. Embora não tivesse dinheiro, tendo de se
mudar de pensão por falta de pagamento, não quer saber de trabalho regular, com
horário e monotonia. Seu universo, até conhecer o barão, era o das ruas, dos
bondes lotados, dos pagamentos atrasados. Obrigado a se virar, Castelo aprende
a ter olho para as oportunidades, para as trambicagens rendosas. Disposto a
levar vantagem em tudo, não tem escrúpulos em enganar, mentir para defender o
seu.
Mas para haver malandro é preciso haver otário. No conto, esse papel é
protagonizado pelo Barão de Jacuecanga, aluno de javanês, preocupado apenas em
garantir a boa forma de sua descendência. Seu interesse pelo javanês é apenas
aparente. Apesar do título e do dinheiro, é supersticioso; teme não cumprir o
desejo do pai e condenar a família à infelicidade. Ingênuo, tolo, cai em todas
as mentiras de Castelo. Afinal, não é todo dia que se encontra um professor de
javanês! Superficial, sem um interesse real pela tal língua, bastam-lhe o
título e o cumprimento formal de um pedido.
Ao lado do barão estão todos aqueles que estupidamente vêem em Castelo a imagem
que o velhote ajudou a criar - a de um sábio respeitável. O título de professor
de javanês cala a cobrança do empregado de pensão. "É um assombro! Tão
moço! Se eu soubesse isso, ah! Onde estava!", admira-se o genro do barão.
Chefes de seções do serviço público, os informados da rua e até o Visconde de
Caruru - todos reconhecem nele um ser superior, especial, digno de todo o
respeito. O título gera fama e prestígio que a personagem sustenta aplicando
golpes sucessivos, safando-se, na malandragem, das situações difíceis.
III- Enredo
Mas não é só a boa-fé dos outros que ajuda Castelo. Ele também conta com a
sorte para livrar-se das armadilhas que o enredo lhe prepara. É o caso do
marujo javanês a quem quase teve de servir de intérprete. No último momento, o
cônsul holandês, adiantando-se à demora do "professor", impede que
este seja desmascarado. É o caso também do congresso de sábios. Por um engano,
é mandado para a seção de tupi-guarani, que se reunia em Paris. Assim não teve
de provar seus conhecimentos de javanês. Sem nenhum escrúpulo, tira o melhor
proveito da situação e volta consagrado pelos artigos publicados em jornais
europeus e pelo banquete que lhe foi "oferecido" em Paris - promoções
que ele mesmo financia. Dos sábios fica um retrato ridículo; toda a sua
sabedoria não serve sequer para desmascarar um impostor espertalhão.
Os lances de sorte não param por aí. Há também o caso da herança que o barão
recebe de um parente português e que, ao morrer, deixa, quase toda, para
Castelo. Por sorte, o aluno de javanês e seu genro conhecem o Visconde de
Caruru, que, como bom arranjador de empregos, coloca Castelo na carreira
diplomática. O retrato do visconde é tão grotesco quanto o do barão. Ambos se
enquadram naquilo que Lima Barreto chamava de "as escoras
sabichonas", ou seja, gente poderosa e rica mas estúpida.
Heranças inesperadas, imprevistos salvando a personagem no último instante: o
enredo é temperado com ingredientes do folhetim - histórias que no século XIX
eram publicadas em capítulos nos jornais. Nessas histórias , o destino sempre
tramava acontecimentos inesperados que transformavam a vida das personagens.
Essa força fora do controle das personagens servia para dar verossimilhança à
história, ou seja, para justificar alguns fatos do enredo.
No conto de LB isso também acontece. Castelo, por exemplo, não poderia gastar
tanto dinheiro com banquetes e publicações em jornais do exterior se não
tivesse recebido a herança do barão. Este, por sua vez, não poderia dar todo
esse dinheiro a Castelo se não o tivesse recebido do parente português.
Os lances folhetinescos também criam suspense na história, pois colocam a
personagem em perigo. O herói é quase desmascarado, mas salvo no último
instante como os heróis do folhetim.
IV- Linguagem
Esperto, sortudo, Castelo também é debochado. É em tom de piada que ele narra
sua história ao amigo Castro. A situação cria um clima informal para a
conversa. Estão em uma confeitaria, bebendo cerveja. Nesse contexto, o caso
ganha ares de assunto mundano. Um caso engraçado para se contar em mesa de bar.
O golpe do narrador vira uma anedota que ridiculariza ainda mais todos os que
acreditaram nele, tornando-os caricaturas grotescas da ingenuidade, da
estupidez. O tom da narração sugere que a safadeza, a malandragem são motivos
de orgulho para o narrador. Ele aprendeu que o reconhecimento social nada tem a
ver com verdades.. Por isso pode contar seu grande golpe sem culpas, e até rir
daqueles que o levaram a uma glória confortável.
Castro, seu interlocutor, pouco interfere na narrativa. Na verdade está mais
próximo do leitor que de Castelo. Entre incrédulo e ingênuo, suas observações
são as que qualquer um de nós poderia fazer diante de uma história tão
"absurda". A ingenuidade de Castro acaba por reforçar a esperteza de
Castelo, que, ao lado dele, parece muito mais habilidoso e experiente no jogo
das relações.
O tom da narração determina também a linguagem do texto: coloquial, tão
informal quanto a situação em que se encontram as personagens. Construções
sintáticas simples, gírias e expressões do cotidiano somam-se ao humor do
narrador para transformar o conto num flagrante do cotidiano, com jeito de
crônica carioca.
V- Espaço
A cidade que LB tanto amava não poderia estar ausente do relato. O Rio de
Janeiro de seu tempo aparece na confeitaria onde os amigos conversam, nos
bondes cheios de "cadáveres", na referência à Biblioteca Nacional, ao
Jornal do Commercio, à rua Conde do Bonfim.
Mas nesse espaço também se notam os limites sociais que Castelo, em sua
trajetória, consegue romper. Ao mundo das pensões e dos bondes lotados opõe-se
a reconfortante alameda de mangueiras da casa do barão, com suas porcelanas
finas e retratos emoldurados em dourado, a própria confeitaria, lugar, naquele
tempo, refinado e frequentado pela burguesia bem-sucedida. O fechado mundo do
barão cede, afinal, à malandragem que Castelo aprendeu no mundo da rua. Ao
ceder, esse mundo fechado, aparentemente ordenado, torna-se cúmplice da
malandragem.
VI- Comentário final
Vítimas da própria estupidez, e por isso mesmo, o barão, seu genro, os sábios e
todos os que se convenceram da notoriedade de Castelo legitimam suas ações,
suas mentiras. Além da estupidez, homens regidos por uma política corrupta,
regida pelos favores são aspectos de uma realidade minada pela desordem - o
avesso daquilo que se apresenta como ordem.
Com a história de Castelo, LB nos apresenta um país sem leis e pouco preocupado
com verdades, talentos ou inteligências sinceras. Embora satírico, O homem que
sabia javanês é uma crítica áspera "aos políticos e aos donos da vida em
geral, à mania de ostentação, ao vazio intelectual e à incompetência" -
denúncias que, lamentavelmente, permanecem atuais.
Triste
Fim de Policarpo Quaresma
1. Enredo:
I Parte
Policarpo Quaresma, mais conhecido por Major Quaresma, subsecretário do Arsenal
de Guerra, residia no bairro de São Januário, na cidade do Rio de Janeiro, há
cerca de trinta anos. Muito conhecido entre a vizinhança, principalmente por
seus hábitos metódicos e por seu extremado nacionalismo, sentia-se realizado em
sua função burocrática no exército, escolhida quando, ao apresentar-se para o
serviço militar, fora recusado pela junta de saúde. Sua pontualidade era tal
que a vizinhança podia marcar o tempo por seus movimentos diários. E seu
nacionalismo era tão extremado que em sua mesa, em sua biblioteca e em seu
jardim havia lugar exclusivamente para comidas, livros e flores genuinamente
nacionais. Na música só apreciava a modinha, a seu ver a mais autêntica e
completa expressão musical da alma brasileira.
Foi devido exatamente às suas preferências musicais que começaram a ser notados
sinais de na vida do metódico subsecretário do Arsenal, sinais logo detectados
pela vizinhança. Ocorria que, depois de quase trinta anos de estudos e de
silencioso devotamento à causa de pátria, Quaresma começara a sentir dentro de
si uma força que impelia a colocar em prática suas ideias, a colaborar para que
o Brasil se tornasse rapidamente uma nação até mesmo superior à Inglaterra, que
na época se encontrava no apogeu de seu poder. A primeira decisão tomada foi a de
aprender a tocar violão. Para tanto contratou como seu professor Ricardo
Coração dos Outros, famoso violinista e cantador de modinhas, que passou então
a frequentar assiduamente a casa, para desgosto de Adelaide, a irmã de
Quaresma, que com ele residia, e para surpresa e espanto da vizinhança. Com a
colaboração do general Albernaz, um vizinho que tinha cinco filhas para casar,
e de Cavalcanti, um dentista, noivo de Ismênia, uma delas Quaresma descobre
também um velho poeta popular que lhe fornece dados relativos a cultura do
povo. Em seu entusiasmo, porém, o subsecretário não se satisfaz com isso e se
dedica ao estudo das manifestações culturais indígenas chegando a assustar
Olga, sua afilhada, e o compadre, o rico imigrante italiano Vicente Coleone, ao
saudá-los à moda tupinambá quando, certa ocasião, estes vão visitá-lo. E um dia
deixa intrigado Ricardo Coração dos Outros ao qualificar a inúbia e o maracá
como instrumentos musicais muitos superiores ao violão.
Assim, ninguém de surpreende quando, no dia do há tanto tempo esperado noivado
de Ismênia uma notícia se espalha rapidamente Quaresma ficara louco e se
encontrava internado. Tudo começara, segundo os presentes à festa, com
requerimento que o subsecretário enviara à Câmara de Deputados solicitando a doação
do tupi como língua oficial do país. O fato provocara risos, tornara-se o
assunto do dia em todos os jornais e atraíra sobre o métodico Quaresma a ira
dos colegas de repartição. A situação tornara-se, porém completamente
insustentável quando o subsecretário, por distração traduzira para o tupi um
requerimento que fora parar no Ministério da Guerra. O incidente gerava sua
suspensão - que apenas não se transformara em demissão por intervenção de
Vicente Coleoni - e o levara a tomar a decisão de interna-se no hospício,
localizado na Praia das Saudades. Ali, Quaresma recebia periodicamente a visita
de Ricardo Coração dos Outros, de Vicente Coleone e da filha.
Em uma destas visitas, na companhia do pai. Olga percebe que o padrinho está
bem melhor e aproveita a ocasião para informá-lo, sem muito entusiasmo, de que
em breve casaria. Ao retornarem à casa de Quaresma, encontram Ricardo Coração
dos Outros, em conversa com Adelaide, que lhes dá notícias do desconsolo de
Ismênia, cujo noivo viajara há meses e nunca mais mandara notícias.
II Parte
Depois de seis meses de internamento Quaresma deixa o hospício aparentando
ter-se recuperado, apesar de demonstrar tristeza e abatimento. Certo dia, Olga,
vendo-o assim, pergunta-lhe se comprar um sítio não seria uma boa solução para
ele.
Quaresma mostra-se tão entusiasmado com a ideia que a afilhada quase se
arrepende de ter falado no assunto. Passando imediatamente à ação, vende sua
casa em São Januário, compra o 'Sossego', um sítio localizado no município de
Curuzu, a duas horas de trem do Rio de Janeiro e, começa a fazer planos de
produzir grandes quantidades de feijão, milho, frutas, verduras, etc. No
'Sossego', em companhia de Adelaide e de Anastácio, um antigo escravo que se
esforça para ensiná-lo a capinar.
Quaresma passa o tempo a trabalhar, limpando o pomar e as imediações da
residência. Apesar do isolamento do sítio, ali também chega a política e
Quaresma recebe um dia a visita do Tenente Antonino Dutra, escrivão da
coletoria, que vem pedir-lhe uma ajuda para a festa da padroeira e sondá-lo a
respeito de sua posição quanto às lutas políticas do município. Quaresma
mostra-se disposto a dar ajuda para a festa mas deixa claro que não pretende
envolver-se na política local, o que faz com que o escrivão fique surpreso e
insatisfeito.
Enquanto isto, no Rio, em seu quarto de pensão, Ricardo Coração dos Outros
reflete, amargurado, sobre o fato de que outro tocador de violão e cantador de
modinhas, um negro, passara aos poucos a ocupar seu lugar fazendo com que o
povo esquecesse o antigo menestrel. Mas uma carta o anima: o general Albernaz
finalmente conseguira marcar o casamento de uma das filhas, Quinota, e o
convidava para a festa. Na ocasião, Ricardo Coração dos Outros revive seus dias
de glória, o general aproveita para falar das batalhas das quais nunca
participara e Ismênia chora ao recordar-se do noivo que nunca mais aparecera.
Uma semana depois Olga também casa, apesar de já estar desiludida do noivo, o
doutor Armando Borges, que inicialmente aparentara ser uma personalidade séria
e dedicada à ciência mas logo se revelara um carreirista sem muitos escrúpulos.
Quaresma decidira não ir à festa do casamento da afilhada, pois a época da
semeadura aproximava-se e ele não queria perder tempo. Contudo, enviara o peru
e o leitão tradicionais. Em Curuzu, a chegada de Ricardo Coração dos Outros,
que decidira visitar o 'Sossego', movimenta a vila e o cantor vive novo período
de glória em meio à sociedade local. Dias depois, Olga e o marido também
aparecem no sitio. Certa manhã, Quaresma e todos os demais são tomados de
surpresa: O Município, um semanário local ligado ao partido situacionista,
publica um editorial atacando violentamente os intrusos, além de uns versos que
ironizavam o antigo subsecretário do Arsenal. O espanto aumenta quando Ricardo
Coração dos Outros relata o que ouvira, dias antes, na vila: todos acreditam
que Quaresma viera ali para fazer política e o escrivão Antonino Dutra jurara
desmascará-lo. Quaresma fica impressionado mas a presença dos amigos faz com que
aos poucos o episódio seja esquecido. Durante os dias em que permanecem no
'Sossego', Olga se choca, em seus passeios pela região, com a miséria da
população e o doutor Armando Borges chega à conclusão de que seria necessário
adubar a terra para que ela produzisse, o que é violentamente negado por
Quaresma, que em seu nacionalismo exacerbado defende a tese de que as terras do
Brasil são as mais férteis do mundo.
Depois de quase um ano lutando contra as ervas daninhas, as formigas, as pestes
e toda a sorte de contratempos, Quaresma, finalmente, consegue produzir aipim,
abacates, abóboras e outros alimentos. Mas ao vendê-los percebe que seu lucro é
quase nulo, já que a ação dos atravessadores faz com que o preço paga ao
produtor seja ínfimo e o cobrado do comprador seja alto. Isto o leva a pensar
na necessidade de modernizar a agricultura, de comprar implementos e talvez até
de usar adubos, como o aconselhara o marido da afilhada. Quaresma se dá conta
também de que as condições em que viviam as populações do interior e que tanto
haviam chocado Olga eram o resultado de uma política consciente dos grupos que
detinham o poder há séculos, os quais não possuíam qualquer interesse em
realizar reformas, pois as mesmas só serviriam para atrapalhar e até destruir seus
esquemas de dominação política e social. Disso tem pessoalmente a prova quando
percebe a rede de intrigas que os grupos políticos de Curuzu armam a seu redor
por ter-se mantido equidistante dos mesmos. Na perspectiva destes grupos, ele é
um intruso que com suas ideias ameaça a tranquilidade do município, sendo
necessário afastá-lo a qualquer custo.
Diante de tudo isto, os olhos do ex-subsecretário do Arsenal se abrem e ele
compreende quanto fora ingênuo com suas ideias a respeito da modinha, do
folclore e, até mesmo, da agricultura. Os remédios necessários para os males do
país eram de natureza bem mais drástica. Era preciso um governo forte,
faziam-se necessárias reformas profundas e leis sábias, principalmente no setor
agrícola. Então sim a terra daria frutos, a população toda viveria em melhores
condições e a Pátria seria feliz.
Quaresma refletia sobre tais assuntos quando Felizardo, um de seus empregados,
o informa que não viria trabalhar no dia seguinte, 7 de setembro, não por ser
feriado, mas porque decidira fugir para o mato a fim de escapar a um possível
recrutamento forçado. Ao ler os jornais, Quaresma, que ficara surpreso com o
fato, entendo tudo. A esquadra revoltara-se e exigia que o presidente, o
Marechal Floriano Peixoto, deixasse o poder. Os lhos de Quaresma brilham: um
governo forte, reformas profundas, leis sábias....Era chegado o momento!
Imediatamente vai até o telégrafo e passa uma mensagem:
'Marechal Floriano. Rio. Peço energia. Sigo já. Quaresma.'
Enquanto isto, a cidade do Rio de Janeiro fervia. Em meio à agitação, o general
Albernaz não só falava de suas batalhas como pensava em ver aumentado seu
soldo, o que lhe possibilitaria casar outra das filhas: o doutor Armando
Borges, por sua parte, preparava um novo salto em sua carreira; Vicente Coleoni
mantinha-se, prudentemente, afastado da política; Ismênia enlouquecia aos
poucos e Olga conformava-se com um casamento infeliz. Só Ricardo Coração dos
Outros, desligado das contingências terrenas e satisfeito com mais um período
de fama, cantava sua última composição: Os lábios de Carola!
III Parte
Passados alguns dias, que ocupara colocando em dia seus negócios e procurando
alguém para fazer companhia a Adelaide, Quaresma viaja ao Rio, contra os
conselhos da irmã e sob o olhar assombrado de Anastácio, que parecia prenunciar
desgraças.
Chegando à cidade, agitada pela revolta, vai ao Palácio presidencial,
carregando um memorial em que expunha as medidas necessárias para reformar e
modernizar a estrutura agrária do país. Floriano, que o conhecera nos tempos do
Arsenal, o saúda e, um tanto a contragosto, recebe o memorial mas não lhe dá
muita importância, chegando a rasgar a primeira folha para escrever um bilhete
ao ministro da Guerra. A conselho do marechal, Quaresma passa a integrar o batalhão
patriótico 'Cruzeiro do Sul', comandado pelo Major Inocêncio Bustamante, agora
tenente-coronel, com quem já se havia encontrado na casa do General Albernaz.
Deixando o Palácio, sai em direção à residência de Vicente Coleoni, cruza-se
com o general, o qual, interrogado sobre o estado de Ismênia, mostra-se
contrafeito, não o informando de que a mesma enlouquecera completamente. Na
casa de Coleoni, Quaresma discute a situação do País com Olga e o doutor
Armando Borges, ocupado então com seu último truque de carreirista: traduzir
seus artigos para uma linguagem difícil, diante da qual seus colegas de
profissão e o público ficavam extasiados. Ao entardecer, segundo determinara o
Tenente-coronel Bustamante, dirige-se ao quartel provisório em que se instalara
o batalhão, na Ponta do Caju, e ali encontra Ricardo Coração dos Outros,
recrutado a força e que se recusa a servir. Quaresma intervém a favor do cantor
mas Bustamante mostra-se irredutível e o incorpora ao batalhão como cabo,
concedendo, porém, que possa ficar com o violão. Agora como major de fato e não
apenas por ter tido certa vez seu nome incluído em uma lista de integrantes da
Guarda Nacional, o ex-subsecretário do Arsenal passa a comandar a guarnição do
quartel provisório do batalhão patriótico 'Cruzeiro do Sul'. Entre seus
comandados estão o próprio Ricardo Coração dos Outros e o Tenente Fontes,
positivista fanático e noivo de Lalá, a terceira filha do General Albernaz.
Responsável pelo canhão da guarnição, o Tenente Fontes mostra-se duro e
autocrático, proibindo Ricardo Coração dos Outros de fazer suas serenatas.
Com o tempo, a guerra passa aos poucos a integrar a vida da cidade e do próprio
Quaresma, que tem no estudo da artilharia sua nova paixão. Às vezes, contudo,
aborrecido da rotina, costumava deixar o posto entregue ao comando do tenente
Fontes, quando este ali se encontrava, ou de Polidoro, o imediato, e ri até a
cidade. Certo dia, andando até São Januário, visita o General Albernaz, em cuja
residência estavam jantando o Almirante Caldas, o Tenente-coronel Bustamante e
o Tenente Fontes. Na discussão que então tem lugar, o tenente mostra-se um
idealista que pensa no futuro da nação e da sociedade como um todo, ao
contrário do almirante e do general. O primeiro, cujo velho sonho era comandar
uma esquadra, mostra-se pessimista com o futuro e o segundo tem como
preocupação fundamental o problema de Ismênia. Pouco depois de Quaresma
retornar ao quartel, ali chega Floriano, que tinha por hábito visitar à noite
as guarnições. Na saída, o ex-subsecretário do Arsenal cria coragem e pergunta
ao marechal se lera seu memorial. Este responde que sim mas não se mostra muito
disposto a discutir as questões nele levantadas, encerrando o diálogo com a
frase: 'Você, Quaresma, é um visionário...'
Por esta época já fazia quatro meses que a revolta se iniciara e a situação
continuava indefinida. Na Ponta do Caju, Ricardo Coração dos Outros, apesar de
promovido a sargento a pedido do Tenente Fontes, entristecia cada vez mais em
virtude da proibição de tocar violão. Quaresma, por sua vez, recordava com
desânimo a forma como fora tratado por Floriano, em quem depositara a esperança
de que viesse a ser o grande líder capaz de reformar e reorganizar o país. E na
casa do General Albernaz, Ismênia definhava a olhos vistos, apesar de terem
sido tentados todos os recursos para salvá-la, inclusive médium e feiticeiros.
Informando desta situação, Quaresma solicita ao doutor Armanda Borges que a
trate. Mesmo não se mostrando muito entusiasmo, o médico acede ao pedido. Seus
esforços, contudo, também nada resolvem e certo dia Ismênia, depois de
manifestar à mãe seu desejo de ser enterrada vestida de noiva, põe o vestido há
tanto tempo guardado, o véu e a grinalda e cai sobre a cama, morta.
Enquanto isto, em Curuzu, o 'Sossego' regredia rapidamente. Anastácio
continuava trabalhando mas de forma totalmente desordenada e assim o sítio
voltara aos poucos ao abandono em que se encontrava antes da chegada de
Quaresma. Na vila, os partidos adversários haviam feito as pazes por algum
tempo diante da situação criada com o surgimento de um terceiro candidato,
imposto pelo governo. O desfile dos que iam votar na secção eleitoral
localizada quase diante do 'Sossego' servira pelo menos para distrair um pouco
Adelaide. Esta, que não tinha qualquer gosto pela roça e, inclusive, passara a
comprar na venda os alimentos de que necessitava, vivia desolada, apesar da
companhia de Sinhá Chica, a mulher de Felizardo, o qual continuava escondido no
mato. Temendo o recrutamento forçado. Nas cartas que escrevia ao irmão,
Adelaide pedia que retornasse o quanto antes, mostrando-se inconsolável pela
situação. Nas respostas, Quaresma lhe pedia calma. A última destas, porém, fora
diferente. O irmão contava que participara de uma batalha feroz, tendo chegado
a matar inimigos, e revelava-se desesperado tanto por seu próprio destino
quanto pela natureza humana. E acrescentava que fora ferido, tendo acontecido o
mesmo com Ricardo Coração dos outros.
Apesar do ferimento não ser grave, a convalescença de Quaresma foi longa, tendo
a mesma servido para que ele meditasse sobre sua vida e suas desilusões. O
período da inatividade chegou ao fim mais ou menos ao mesmo tempo que a
revolta. As forças leais a Floriano dominaram a baía da Guanabara, os oficiais
revoltosos refugiaram-se em navios portugueses e os marinheiros foram presos.
Por esta época, Quaresma e Ricardo Coração dos Outros recebem alta. Este vai
para a ilha das Cobras e o major é destacado para comandar a guarnição da ilha
das Enxadas, assumindo a contragosto o papel de carcereiro, pois ali
encontravam detidos os marinheiros abandonados por seus oficiais. Sozinho, sem
ninguém para conversar, Quaresma fica profundamente deprimido ao refletir sobre
o inesperado e melancólico final de uma aventura que o levara a ser o carcereiro
de pobres seres humanos que estavam à mercê dos vencedores pelo crime de terem
obedecido a seus superiores, que os haviam deixado à própria sorte. E certo
dia, ao assistir a uma cena em que alguns dos prisioneiro eram escolhidos ao
acaso e retirados da ilha para serem fuzilados, não resiste e escreve uma carta
protestando violentamente contra o ato. Imediatamente é preso como traidor e
levado para a ilha das Cobras para ser executado. Ali, diante da morte, mais
uma vez medita sobre a inutilidade de sua vida, sobre o desastre q que o havia
levado a causa republicana, sobre a própria ingenuidade ao acreditar no
idealismo de homens que buscavam antes de tudo vantagens para si próprios e não
a transformação e a felicidade da Pátria. Pátria, aliás, que lhe parecia agora
não ser mais que um mito, um fantasma que criara no silêncio de seu gabinete.
Sem amores, sem filhos, abandonado por todos, diante do vazio de sua vida e da
morte próxima, Quaresma chora.
Quaresma enganara-se, porém, pelo menos no que dizia respeito a Olga e Ricardo
Coração dos Outros. Este, tão logo soubera da detenção, fazia tudo para
conseguir a libertação, mesmo ciente de que corria grandes riscos, pois fora
informado que a carta de Quaresma provocara grande indignação no Palácio presidencial,
onde o massacre dos prisioneiros era visto como uma necessidade destinada a
servir de exemplo e, assim, a fortalecer o regime. Contudo, seus esforços de
nada resolvem.
Nem o General Albernaz, nem seu genro Genelício, nem o tenente-coronel Bustamante
aceitam interceder em favor de Quaresma. Sem saber o que fazer, Ricardo Coração
dos Outros vai a casa de Olga. Esta mostra-se desorientada, pois também não
tinha noção do que fazer. Em determinado momento, porém, o menestrel a lembra
que ela própria poderia ir ao Palácio. Surpreendendo-se inicialmente com a
ideia, decide enfrentar a situação. Ao saber disto, temeroso das consequências
deste ato para suas ambições de carreirista, o doutor Armando Borges fica
furioso e quer impedi-la de fazer o que pretende. Olga, porém, não o atende e
sai da residência determinada a falar com o presidente. No palácio, um ajudante
de ordens de Floriano, depois de qualificar Quaresma de traidor e bandido, a
informa de que não será recebida.
Olga não insiste e retira-se orgulhosamente, chegando à conclusão de que talvez
fosse mais coerente deixar o padrinho morrer só e heroicamente do que
humilhá-lo com um pedido de clemência que diminuiria sua grandeza moral diante
de seus verdugos. Olhando a cidade e pensando nas profundas modificações que
tudo sofrera ao longo de quatro séculos, consola-se pensando que o futuro trará
mudanças. E nutrindo esta frágil esperança segue ao encontro de Ricardo Coração
dos Outros.
2. Personagens
Policarpo Quaresma
A história de Policarpo Quaresma, como personagem central da obra, é a história
de um erro. E este erro é, fundamentalmente, a incapacidade do protagonista em
detectar as estruturas de poder. Na verdade, ele percebe as consequências
destas estruturas mas não chega a descobrir como as mesmas funcionam. Seu
nacionalismo, seu desejo de transformar a agricultura e seu projeto de
reorganizar o próprio país partem de uma adequada análise da realidade mas não
levam em conta os mecanismos geradores desta realidade.
Assim, Quaresma aparece como frágil e solitário porque sua confiança nas
instituições políticas não é mais do que um equívoco, pois se baseia no falso
pressuposto de que os homens que as representam possuam um idealismo que vá
além de seus próprios interesses imediatistas. Floriano, encarnando o próprio
poder, o define com frieza e completa propriedade: 'Você, Quaresma, é um
visionário...' Um visionário não porque seja louco ou porque seus projetos
sejam absurdos em si, mas porque o são por não se adequarem e até serem
contrários aos interesses dos grupos que detêm o poder.
Ao final, como ao longo de toda a obra, Quaresma, mais uma vez, percebe, os
fatos com realismo mas não entende por que sua aventura termina em tragédia.
Este conflito é a própria essência do personagem. Se ele entendesse as leis que
regem o mundo permaneceria à margem dos acontecimentos - como o imigrante
Coleoni - ou a eles se amoldaria, deles se aproveitando. Mas neste caso não
seria Policarpo Quaresma nem personagem de Lima Barreto. Pertenceria antes à
galeria do discretos canalhas que povoam a ficção de Machado de Assis, por
exemplo.
Ricardo Coração dos Outros
Ricardo Coração dos Outros, o trovador suburbano, é, no conjunto da obra, um
personagem complexo, possuindo uma importância somente inferior à de Policarpo
Quaresma e podendo ser analisado a partir de, pelo menos, três pontos de vista
bastante distintos, se bem que não exclusivamente entre si.
Como personificação do artista nacional na visão de Policarpo Quaresma, Ricardo
Coração dos Outros representa a cultura popular, isto é, as formas de expressão
dos grupos sociais inferiores, já que os grupos dirigentes, por definição e
sempre na visão de Policarpo Quaresma, possuem formas de expressão artísticas
alienígenas, não nacionais. Como tal, desconsiderada momentaneamente a
idealização de que é objeto por parte do nacionalismo do protagonista, ele pode
ser considerado como símbolo da rígida estratificação cultural - produto da
estratificação econômica e social - da sociedade brasileira.
Por outro lado, em termos estritamente sociais, Ricardo Coração dos Outros
tipifica amplos segmentos da sociedade carioca da época: os moradores dos
subúrbios, segundo diz o narrador/comentarista, também divididos, por sua vez,
em estratos. No contexto desta sociedade, o trovador suburbano utiliza sua
habilidade de músico como instrumento de ascensão social, deixando claros tanto
sua pretensão de alcançar com sua arte também os bairros ricos quanto um mal
disfarçado racismo.
Finalmente, Ricardo Coração dos Outros pode ser tomado ainda como protótipo do
artista, mergulhado em seu trabalho criador, afastado das contingências
mundanas e das preocupações práticas e dedicado a ser o coração dos outros,
isto é, o porta-voz dos sentimentos e emoções dos demais.
Olga
Na ficção brasileira Olga surge como primeiro personagem feminino a dissecar
logicamente e a verbalizar claramente sua posição no mundo a partir de uma
perspectiva crítica coerente. Esta análise não chega a adquirir grande
profundidade mas é suficientemente ampla para englobar tanto sua função social
especifica como mulher quanto a própria realidade política.
No primeiro caso, rebela-se contra o oportunismo do marido, preocupado
exclusivamente com sua própria carreira. No segundo, a partir da crise
desencadeada pelo trágico destino do padrinho, revolta-se contra as
instituições, que determinam o caminho dos indivíduos dentro delas. E é somente
ao juntar os dois planos, o pessoal e o social, que Olga, abandonando o
conformismo a que se entregara por entender que não havia alternativas para
ela, manifesta corajosamente sua rebeldia. Contudo, também realista como o
marido, apenas que com interesses diversos, não tira todas as consequências de
sua atitude e entrega ao processo histórico-social o papel de desencadeador das
necessárias e inevitáveis mudanças. Na verdade, apesar de pertencer a uma
geração de mulheres que começam a não aceitar mais um papel submisso e
secundário - como o de Maricota, a esposa de Albernaz, ou de Adelaide - é
preciso acentuar que Olga, como filha de um abastado imigrante, tem todas as
condições econômicas e sociais para comandar seu próprio destino e de fugir ao
trágico final de Ismênia.
Floriano
Apesar de aparecer apenas incidentalmente, o personagem do marechal e
presidente Floriano Peixoto adquire importância não apenas por ser transportado
do mundo real da história para a ficção mas principalmente por representar o
poder. Alvo de violentas críticas nas intervenções do autor/narrador, que
nestas ocasiões o identifica como o próprio Floriano do mundo real da história
e não como personagem de ficção, o marechal é visto como um feroz tiranete
doméstico, intelectualmente limitado e politicamente despreparado.
Esta imagem, contudo, contradiz sua ação como personagem de ficção em si, pois
nesta condição mostra compreender muito bem o poder que possui, os atos que
pratica e o papel que desempenha. Afinal, é ele que, ao tomar conhecimento dos
projetos do major, o define com uma precisão inapelável: 'Você, Quaresma, é um
visionário...' Da mesma forma que é ele que o condena, segundo a fria e brutal
lógica do poder, de acordo com a qual não havia outra saída. Porque, de fato,
Quaresma nada entendera.
3. Estrutura narrativa
Composto de três partes, cada uma dividida em cinco capítulos, Triste fim de
Policarpo Quaresma narra a história do Major quaresma, um nacionalista bem
intencionado mas ingênuo que pretende reformar o país, principalmente o setor
agrícola. Ao longo da narração, organizada segundo o esquema de um narrador
onisciente em terceira pessoa, este às vezes assume a posição de
autor/comentarista, apontando e selecionando ideias e fato relevantes,
principalmente quando se trata de fornecer elementos que possibilitem ema
análise política do período histórico no contexto do qual se desenrola a história
do protagonista. A ação tem por palco o Rio de Janeiro e suas imediações nos
anos imediatamente seguintes à proclamação da República, mais especificamente
durante o governo do mal. Floriano Peixoto, que aparece na obra como
personagem.
Modernismo
– 1ª geração
Semana
de Arte Moderna
Manifesto
da Poesia Pau-Brasil
Manifesto da Poesia Pau-Brasil - Oswald de Andrade
Comentário:
Em 1924, Oswald de Andrade, no Manifesto da poesia
pau-brasil (Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18/03/24), defendia uma condição
para o poeta: “sem reminiscências livrescas. Sem comparação de apoio. Sem
pesquisa etimológica. Sem ontologia. Foi inicialmente publicado no jornal
Correio da Manhã, edição de 18 de março de 1924: no ano seguinte, uma forma
reduzida e alterada do manifesto abria o livro de poesias Pau-Brasil. No
manifesto e no livro Pau-Brasil [ilustrado por Tarsila do Amaral], Oswald
propõe uma literatura extremamente vinculada à realidade brasileira, a partir
de uma redescoberta do Brasil. Ou, como afirma Paulo Prado ao prefaciar o
livro: “Oswaldo de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Face
Clichê – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A volta
à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação
surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já
desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e
misterioso. Estava criada a poesia” pau-brasil “.”
Texto:
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de
ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça.
Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A
formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e
a dança.
Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil.
O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui
Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos
bailes e das frases feitas. Negras de jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar
difícil.
O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado
e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar
de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O
Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos
cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.
Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que
sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.
A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia,
críticos, crítica, donas de casa tratando de cozinha.
A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e
descobrem.
Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o
teatro de base e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser
decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como
Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico.
Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia.
A poesia Pau-Brasil, ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars: - Tendes as
locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em
que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso
destino.
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida.
Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das
idéias.
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e
neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como
somos.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só
fardas. Os futuristas e os outros.
Uma única luta - a luta pelo caminho. Dividamos:
poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.
Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco
partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadro de
carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário
oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho...Veio a
pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina
fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da
misteriosa genialidade de olho virado - o artista fotográfico.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de
folhinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de
manivela, o piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela.
Stravinski.
A estatuária andou atrás. As procissões saíram
novinhas das fábricas.
Só não se inventou uma máquina de fazer versos - a
havia o poeta parnasiano.
Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava
para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: 1a) a
deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De
Cézanne e Mallarrmé, Rodin e Debussy até agora. 2a) o lirismo, a apresentação
no templo, os materiais, a inocência construtiva.
O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência
da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia
Pau-Brasil.
Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio
rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.
A síntese
O equilíbrio
O acabamento de carrosserie
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala
Qualquer esforço natural nesse sentido será bom.
Poesia Pau-Brasil.
O trabalho contra o detalhe naturalista - pela
síntese; contra a morbidez romântica - pelo equilíbrio geômetra e pelo
acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.
Uma nova perspectiva.
A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu.
Era uma ilusão de ótica. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de
aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a
perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem:
sentimental, intelectual, irônica, ingênua.
Uma nova escala:
A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com
letras nos livros, crianças nos colos. O reclame produzindo letras maiores que
torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes.
Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e
ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O
correspondente da surpresa física em arte.
A reação contra o assunto invasor, diverso da
finalidade. A peça de tese era um arranjo monstruoso. O romance de idéias, uma
mistura. O quadro histórico, uma aberração. A escultura eloqüente, um pavor sem
sentido.
Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes
sob a luz.
A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar das gaiolas,
um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No
jornal anda todo o presente.
Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do
mundo. Ver com olhos livres.
Temos a base dupla e presente - a floresta e a escola.
A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da
mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de "dorme nenê que o bicho vem
pegá" e de equações.
Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas
elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o
Museu Nacional. Pau-Brasil.
Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia
preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade
um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar.
Pau-Brasil.
O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar
o relógio império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional
e puro em sua época.
O estado de inocência substituindo o estado de graça
que pode ser uma atitude do espírito.
O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a
adesão acadêmica.
A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O
melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.
Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de
química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting
cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem
comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.
Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de
jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o
minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.
Oswald de Andrade (Correio da Manhã, 18 de
março de 1924)
(Apostila 13 de
Modernismo de 22 - Literatura Brasileira)
Vidas Secas
O drama da família de
retirantes, obrigada a se mudar constantemente por causa da seca, é narrado num
estilo com economia de adjetivos, que transmite a aridez do ambiente e suas
conseqüências para os sertanejos
Vidas Secas,
romance publicado em 1938, retrata a vida miserável de uma família de
retirantes sertanejos obrigada a se deslocar de tempos em tempos para áreas
menos castigadas pela seca. A obra pertence à segunda fase modernista,
conhecida como regionalista, e é qualificada como uma das mais bem-sucedidas
criações da época.
O estilo seco de
Graciliano Ramos,
que se expressa principalmente por meio do uso econômico dos adjetivos, parece
transmitir a aridez do ambiente e seus efeitos sobre as pessoas que ali estão.
A ESTÉTICA DA SECA
O livro consegue desde o título mostrar a desumanização que a seca promove
nos personagens, cuja expressão verbal é tão estéril quanto o solo castigado da
região. A miséria causada pela seca, como elemento natural, soma-se à miséria
imposta pela influência social, representada pela exploração dos ricos
proprietários da região.
Os retirantes, como o próprio nome indica, estão alijados da possibilidade de
continuar a viver no espaço que ocupavam. São, portanto, obrigados a retirar-se
para outros lugares. Uma das implicações dessa vida nômade dos sertanejos é a
fragmentação temporal e espacial.
Graciliano Ramos
conseguiu captar essa fragmentação na estrutura de
Vidas Secas ao
utilizar um método de composição que rompia com a linearidade temporal,
costumeira nos romances do século XIX.
A proposital falta de linearidade, ou seja, de capítulos que se ligam,
temporalmente, por relações de causa e de consequência, dá aos 13 capítulos de
Vidas Secas uma
autonomia que permite, até mesmo, a leitura de cada um de forma independente.
ENREDO
O enredo, marcado por essa falta de linearidade temporal, tem dois
capítulos bem definidos: o primeiro (“Mudança”) e o último (“Fuga”). “Mudança”
narra as agruras da família sertaneja na caminhada impiedosa pela aridez da
caatinga, enquanto em “Fuga” os retirantes partem da fazenda para uma nova
busca por condições mais favoráveis de vida. O romance estrutura-se por meio da
sequência retirada/permanência em terras alheias/retirada.
Nos 11 capítulos intermediários, a família de retirantes não se estabelece em
um local próprio, mas na propriedade de um fazendeiro, onde Fabiano, o chefe
dessa família, assume a condição de meeiro, lavrador que planta em sociedade
com o dono do terreno, tendo direito à metade da colheita.
Merece destaque, no romance, o capítulo “Baleia”.
Foi o primeiro escrito por
Graciliano Ramos e o
que mais tem autonomia em relação aos demais. Se em todos os outros capítulos
há certa independência, e eles podem ser lidos fora da sequência proposta pelo
autor, nesse caso a leitura pode até ser feita isoladamente. Essa possibilidade
se deve a sua estrutura, que se assemelha mais à de um conto.
NARRADOR
A escolha do foco narrativo em terceira pessoa é emblemática, uma vez que esse
é o único livro em que
Graciliano Ramos
utilizou tal recurso. Trata-se, na verdade, de uma necessidade da narrativa,
para que fosse mantida a verossimilhança da obra. Por causa da paupérrima
articulação verbal dos personagens, reflexo das adversidades naturais e sociais
que os afligem, nenhum parece capacitado a assumir o posto de narrador.
O autor utilizou também o discurso indireto livre, forma híbrida em que as
falas dos personagens se mesclam ao discurso do narrador em terceira pessoa.
Essa foi a solução para que a voz dos marginalizados pudesse participar da
narração sem que tivessem de arcar com a responsabilidade de conduzir de forma
integral a narrativa.
ESPAÇO
A narrativa é ambientada no sertão, região marcada pelas chuvas escassas e irregulares.
Essa falta de chuva – somada a uma política de descaso do governo com os
investimentos sociais – transforma a paisagem em ambiente inóspito e hostil.
Inverno, na região, é o nome dado à época de chuvas, em que a esperança
sertaneja floresce. O sonho de uma existência menos árida e miserável esboça-se
no horizonte e dura até as chuvas cessarem e a seca retornar implacável. No
romance, essa esperança aparece no capítulo “Inverno”, em que Fabiano alimenta
a expectativa de uma vida melhor, mais digna.
O retorno à visão marcada pela falta de perspectivas recomeça com o fim das
chuvas, com o fim da esperança. Na obra, pode-se apontar, também, para dois
recortes espaciais: o ambiente rural e o urbano. A relevância desse recorte se
deve às sensações de adequação ou inadequação dos personagens em um ou outro
espaço.
Fabiano consegue, apesar da miséria presente, dominar o ambiente rural. Incapaz
de se comunicar, o personagem, desempenhando a solitária função de vaqueiro,
não sente tanto as conseqüências de seu laconismo. Além disso, conhece as
técnicas de sua profissão, o que lhe dá uma sensação de utilidade e permite que
goze até de certa dignidade. A passagem em que seu filho o admira ao vê-lo
trabalhando deixa claro isso. Na cidade, porém, Fabiano vivencia, a cada nova
experiência, o sentimento de inadequação. Os capítulos “Festa” e “Cadeia”
ilustram bem essa sensação.
TEMPO
Além da falta de linearidade do tempo, em
Vidas Secas há
nítida valorização do tempo psicológico, em detrimento do cronológico. Essa
opção do narrador de ocultar os marcadores temporais tem como principal
conseqüência o distanciamento dos personagens da ordenação civilizada do tempo.
Dessa forma, nota-se que a ausência de uma marcação cronológica temporal serve,
enquanto elemento estrutural, como mais uma forma de evidenciar a exclusão dos
personagens.
Por outro lado, a valorização do tempo psicológico na narrativa faz com que as
angústias dos personagens fiquem mais próximas do leitor, que as percebe com
muito mais intensidade.
CONCLUSÃO
Vidas Secas é
um dos maiores expoentes da segunda fase modernista, a do regionalismo. O
diferencial desse livro para os demais da época é o apuro técnico do autor.
Graciliano Ramos, ao
explorar a temática regionalista, utiliza vários expedientes formais – discurso
indireto livre, narrativa não-linear, nomes dos personagens – que confirmam
literariamente a denúncia das mazelas sociais.